Somos realmente modernos? Superamos nossos antepassados deixando para trás o primitivismo tribal marcado na pele para ascender as esferas superiores da cultura e da razão ou sob uma capa reluzente de modernidade ainda se agitam os instintos primevos da alma que dispõem do corpo para se apaziguar? Subjugamos esse corpo com a ciência e a tecnologia para deixá-lo belo como queremos ou desenvolvemos as cirurgias e os aparelhos justamente porque nunca nos livramos da pressão pela beleza do corpo? São questões fascinantes, atuais, que nos confundem e sobre as quais o bisturi preciso do xamã-cirurgião Charles é capaz de tirar sucessivas fatias de significados. Como camadas da epiderme, ele nos descarna contínuos conteúdos de uma ancestral relação que une cada um de nós ao jogo social complexo, muitas vezes cruel, onde duelamos com a exigência pela boa aparência e o poder de disso emana. Faz-nos passear pelos meandros psicológicos da autoestima, confrontando-nos com a hipocrisia de salão ostentada para disfarçar nossa dependência da imagem, a vaidade de negá-la e o esforço para se convencer que o conteúdo é mais importante que a aparência. Charles não afirma o contrário, aliás, em muitos momentos nos dá oportunidade de veri- ficar esta máxima; mas, ao mesmo tempo, mostra cristalinamente o quanto ainda precisamos levar no corpo aquilo que deveria ser avaliado na alma. E que Virgílio mais adequado para nos conduzir aos recônditos desse passeio atemporal pela divina comédia humana (re-citando Dante e Balzac,dois mestres relembrados pelo autor) que um cirurgião plástico? Aquele ser humano depositário das expectativas conflitantes, dos desejos obsessivos, das vaidades inebriantes que a ele recorrem; o profissional a quem fortes e fracos se confessam, se hipotecam, física e psicologicamente, na tentativa de remodelarem-se na carne viva, refazendo-se para nova vida. La promenadi ao qual este livro e seus artigos nos conduzem não é um passeio técnico e burocrático. A mente ilustrada de seu autor vagueia séria, mas descompromissadamente, por diferentes planos do saber. Aqui nos brinda com o existencialismo penetrante de personagens da Sra. Woolf; ali, corremos séculos pela curiosa, às vezes macabra, história da medicina e cirurgia; mais adiante percorremos povos distantes (gregos, polinésios) para nos surpreender com a semelhança de suas ancestrais práticas corporais e nossas atuais assépticas intervenções cirúrgicas. Ademais há “seio”, ou não seio , oximoros e lógica, a bíblia e o patinho feio, Foucault e Frankenstein, togas e soutiens, sociedade de consumo e corpolatria, deusas minóicas e Salomé, ritos de passagem e operações… Uma miríade de relações surpreendentes. Por tudo isso e por muito mais que se pode descobrir em “Em Carne viva”, devemos nos render á esse turbilhão, á essa orgia sincrética onde beleza e feiura se amalgamam num politeísmo de temas que se sucedem sem cansar. Ao longo dos artigos, reavaliemos nossa superioridade frente a estas questões tão convenientemente relegadas á categoria de fútil e superficial, onde o impressionante poder que tem sobre as mentes e corpos parece atenuado. Apenas parece, pois padecemos de beleza, matamos e nos mutilamos por ela desde tempos imemoriais e se esta condição parece atroz, nos resta a consolação do senhor Sander Gilman, citado pelo dr. Charles : “Em um mundo no qual somos julgados por nossa aparência, é libertador a crença de que podemos modificá-la’.